A luz do fim da tarde escorria pela janela em faixas tortas, iluminando poeira suspensa no ar — partículas que dançavam como se obedecessem a um ritmo só seu.
— Ele não pareceu assustado — falei por fim, a voz mais baixa do que pretendia. — Parecia... avisado.
Billy virou o rosto para mim, os olhos estreitos. Ele sempre enxergava o mundo como um quebra-cabeça de sinais e coincidências. Eu, não. Eu enxergava o que estava à frente: tábuas rangendo, um gerente com camisa errada para o clima, e um quarto que cheirava a segredo e mofo.
— O Curupira vira os pés pra trás pra confundir quem o persegue — disse ele, como se estivesse lendo um livro invisível. — Mas por que todo mundo aqui parece estar fugindo dele... ou dele mesmo?
Antes que eu pudesse responder, um som cortou o silêncio: três batidas secas na parede, vindas do quarto ao lado. Não foi um toque casual. Foi ritmado. Um código. Uma chamada.
Fiquei imóvel. Billy soltou o quadro e deu um passo atrás.
— Você ouviu?
— Ouvi — respondi, mas já não tinha certeza se queria ter ouvido.
A porta rangeu de novo. Não foi aberta, mas sentimos a presença. Algo do lado de fora. Um leve movimento na fresta sob a soleira, como se uma sombra tivesse passado e parado ali, imóvel.
— Assim que estiverem acomodados — dissera Vargas — preciso falar com vocês. É urgente.
Mas quanto tempo fazia? Dez minutos? Quinze? E por que ele não voltava?
— Vamos esperar — sussurrei, mas já estava de pé, aproximando-me da janela. A mata cerrada se estendia além do vidro rachado, densa, verde-escura, como se engolisse a luz. Nada se movia. Nada, exceto um galho que balançou — sozinho.
— Hustler — chamou Billy, a voz trêmula pela primeira vez desde que saímos da cidade. — O quadro... mudou.
Virei-me devagar.
O desenho do Curupira continuava na parede. Mas agora os pés virados para trás estavam... sujos. Marcas de lama escorriam da tela, como se tivessem sido pisadas recentemente. E os olhos — antes apenas dois pontos escuros — agora refletiam algo. Um brilho. Um reflexo de fogo.
— Isso não é possível — disse Billy, mas não se afastou. Ao contrário, deu um passo à frente, como se aterrorizado e fascinado ao mesmo tempo.
— Não encoste nele — ordenei.
Mas foi tarde.
Ele tocou a tela com a ponta dos dedos.
E o quarto inteiro estremeceu.
Não foi um tremor de terra. Foi como se o tempo tivesse dado um salto, um piscar de olhos que durou mais do que deveria. A luz se apagou. A janela escureceu. E, por um instante — apenas um —, o cheiro de mofo desapareceu, substituído por cinzas, fumaça e algo doce, como flores apodrecendo.
Então, do corredor, veio o som de passos.
Mas não eram passos normais.
Eram desiguais. Um pé pisava para frente. O outro, para trás.
— Vargas? — chamei, mas minha voz soou estranha, abafada, como se viesse de longe.
Ninguém respondeu.
Os passos pararam diante da porta.
E então, uma voz — não de Vargas, não de ninguém que já tivéssemos ouvido — sussurrou, vinda de todos os lados ao mesmo tempo:
— Vocês não deveriam ter tocado.
O trinco da porta tremeu.
Mas não foi girado.
Foi empurrado para baixo, como se algo estivesse se espremendo por baixo, entrando devagar, com paciência infinita.
Billy recuou até a cama. Eu fiquei onde estava, olhos fixos na fresta sob a porta.
E então, vi.
Uma sombra se esticava pelo chão. Mas não seguia a luz da janela.
Ela se movia sozinha.
— Hustler — sussurrou Billy, a voz quase inaudível. — Ele não está aqui pra proteger a floresta...
Engoli em seco.
— Ele está aqui pra proteger ela de nós.
No teto, a pintura do Curupira sorria. E seus olhos, agora, estavam abertos.
CONTINUA...
POR ALCÍ SANTOS