O cheiro de mofo e salitre impregnava o convés inferior do navio quando adotei meu vigésimo terceiro nome: Hustler. Um termo que corta como lâmina —pode significar trapaceiro, sobrevivente, ou apenas alguém que se recusa a morrer.
Minhas unhas afundavam na madeira úmida enquanto eu contava os passos dos marinheiros no piso superior. Vinte e cinco anos fugindo me ensinaram: até um suspiro pode ser pista.
Las Vegas ainda habita meus pesadelos. O brilho dourado dos cassinos se faz agulhas sob minha pele; o sabor amargo da cocaína misturado a sangue, mordendo próprio lábio para não expor nomes.
Eu lia rostos melhor que livros — uma pálpebra tremula antes da mentira, um dedo coça o polegar sutilmente antes da traição. Construí um império decifrando esses detalhes.
E o perdi do mesmo modo. Agora, no transatlântico Voyager, meu corpo se escondia junto à parede da cozinha, observando os passageiros através do monitor de segurança.
Mãos se apertavam com força desnecessária. Riso durava um segundo a menos do que o necessário. Até o garçom, inclinando levemente o copo de champanhe — um ex-agente da Interpol, se minha intuição ainda valia algo. No terceiro dia, o garoto rompeu meu protocolo.
Billy. Dez anos, cabelos negros como as asas do corvo que matei na infância para provar que não sentia medo. Ele não apenas olhava as pessoas — as dissecava. Seus olhos recaíam sobre cada gesto: o capitão alisando o queixo ao mentir sobre o atraso, a socialite francesa tocando o pingente de rubi sempre que mencionavam o magnata desaparecido do petróleo. A primeira conversa foi um duelo silencioso:
— Você também enxerga os padrões — ele declarou, empilhando cubos de açúcar em forma de pirâmide.
Meu café esfriou enquanto, sem perceber, eu replicava sua construção com sachês de adoçante. O navio balançou e nossas torres ruíram ao mesmo tempo. Na escola isolada da Suíça onde nos escondemos depois, Billy aperfeiçoou seu método. Anotava em códigos as inconsistências dos professores:
— O professor de química cheira a pólvora depois das "aulas particulares" com a diretora — sussurrou numa noite, desenhando equações invisíveis no ar pesado do dormitório.
Eu fingia ignorar o caderno, repleto de setas conectando desaparecimentos de alunos a visitas "oficiais" ao porão. Agora, na Amazônia, é a floresta que nos observa.
Meu café esfriou enquanto, sem perceber, eu replicava sua construção com sachês de adoçante. O navio balançou e nossas torres ruíram ao mesmo tempo. Na escola isolada da Suíça onde nos escondemos depois, Billy aperfeiçoou seu método. Anotava em códigos as inconsistências dos professores:
— O professor de química cheira a pólvora depois das "aulas particulares" com a diretora — sussurrou numa noite, desenhando equações invisíveis no ar pesado do dormitório.
Eu fingia ignorar o caderno, repleto de setas conectando desaparecimentos de alunos a visitas "oficiais" ao porão. Agora, na Amazônia, é a floresta que nos observa.
O ar pesa como um cobertor molhado sobre os pulmões. Billy congela diante de uma árvore marcada por garras a exatos 1,83 metros — altura média de um homem adulto. Seus dedos tremem ao tocar os sulcos, enquanto eu conto os gritos de arara que soam quase como palavras humanas.
— Eles estão nos testando — ele murmura.
Não preciso perguntar quem. A selva respira em sincronia com minha frequência cardíaca.
As folhas murmuram meu nome verdadeiro — aquele que nem Billy conhece. Bom, eu acho que não. À noite, entre os sons que rastejam para dentro da barraca, Billy me pergunta pela sétima vez por que fugimos de Vegas. Meus dentes perfuram a bochecha até saborear o metal do passado. O psicopata que fui ou que forjaram em mim, sorri das trevas.
A selva não é inimiga. É espelho. E, no rio negro que corta entre as árvores ancestrais, vejo refletido não o rosto de agora, mas o da menina que incendiou seu primeiro cassino aos doze anos. Billy aperta minha mão gelada enquanto o último fragmento de mim que ainda tenta ser humano sussurra:
"Desta vez, ao corrermos, será em direção à verdade ou fugindo dela?"
CONTINUA...
POR ALCÍ SANTOS
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