O impacto no asfalto arrancou o ar dos meus pulmões. Por um segundo, tudo o que existia era o zumbido nos ouvidos e o cheiro de poeira e vidro. Billy rolou ao meu lado, gemendo, mas vivo.
— Hustler... a gente tá morto? — murmurou ele, tentando se levantar.
— Ainda não.
Apoiei a mão no chão frio e forcei o corpo a ficar de pé, mas se a gente ficar parado, aí morreremos mesmo.
Acima de nós, o quarto explodia em clarões azuis que dançavam pelas frestas da janela estilhaçada. A luz do giz do Guardião atravessava o vidro como se fosse papel de seda, riscando o interior com relâmpagos silenciosos.
— Ele vai descer — sussurrou Billy.
— Cara, ele vai descer. É por isso que a gente vai sumir antes.
Puxei-o pela gola da camisa, arrastando-o para a sombra projetada pelo prédio vizinho.
— Anda. Mantém a cabeça baixa Billy.
A rua parecia mais longa do que algumas horas antes. O poste de mercúrio piscava, como se também tivesse medo de se manter aceso. Cada janela escura era um olho fechado, recusando-se a testemunhar o que caminhava entre mundos naquela noite.— O que foi aquilo na porta? Billy insistiu, tropeçando no meio-fio.
— Não era só poder humano, Hustler. Gente não desmancha porta em poeira.— Era humano o suficiente pra usar terno e falar em “propriedade do Estado”. — Apertei o passo. — O resto é o tipo de empréstimo que se paga caro.Virei a esquina sem olhar para trás, mas senti, mais do que ouvi, quando o clarão no quarto cessou. O silêncio que se seguiu não era vazio; era atento. Como se o Guardião tivesse parado para escutar nossos passos na calçada.
— Ele pode nos rastrear? — perguntou Billy.
Se o giz dele funciona como o seu quadro, pode. — Apontei para o casaco de Billy.
— Cadê o seu giz?
— Quebrei tudo quando terminei o desenho. Você viu.
— Ótimo. Então, por enquanto, só ele tem linha para escrever no ar. Caminhamos em direção à avenida principal, onde a cidade ainda fingia normalidade com letreiros de farmácia e padarias fechadas pela metade. Um ônibus vazio passou, iluminando-nos por dentro como fantasmas por alguns segundos.
— Hustler, e se ele estiver certo? — Billy perguntou, a voz quase sumindo no barulho distante de um motor.
— E se o tribunal da floresta tiver errado em confiar em você?
— O tribunal não confia em ninguém, Billy. Ele negocia.
Olhei para os meus próprios dedos, ainda manchados da lama sagrada que pingara da tela.
— E eu aceitei o contrato. Quem tá em dívida agora sou eu.
Billy respirou fundo, engolindo as próximas objeções. Sabia que, depois da sentença do Curupira, não havia volta. Ou cumpríamos o prazo, ou virávamos ecos — sombras sem história, andando em círculos na memória da floresta.
— O Arquivo Nacional fica do outro lado da cidade — ele comentou, quase para preencher o silêncio.
— Como a gente chega lá sem ser riscado do mapa por um giz azul assassino?
— Primeiro, a gente precisa de sombra. Depois, de velocidade.
Olhei para o fim da avenida, onde as luzes dos táxis formavam uma linha tremeluzente. O mundo humano continuava funcionando, alheio ao tribunal e ao Guardião. Mas, naquele momento, toda a ordem urbana parecia um véu fino demais para segurar o que vinha do escuro.— E da próxima vez que ele aparecer — completei —, a gente vai estar preparado. Porque se o Estado acha que possui o Vargas, então o Estado tem rastro. E rastro é tudo o que a gente precisa.
CONTINUA...
POR ALCÍ SANTOS